Puro malte

As cervejas especiais conquistam o paladar do brasileiro, viram tendência e prometem dar lucro a bares e restaurantes

Por Ana Claudia Machado

*Reportagem de capa da 10ª Edição da Revista Gestão & Gastronomia

GG_10_EdicaoTerceiro maior produtor mundial de cerveja, terra dos slogans e pátria do maior negócio de bebidas do mundo (a Ambev), o Brasil acorda tarde – mas convicto – para as sutilezas do bom malte. Apesar da escala de produção ainda ser tímida, as cervejas especiais chamam cada vez mais a atenção dos consumidores não só por apresentar acréscimo de ingredientes inusitados, rótulos diferenciados e garrafas com formatos adversos aos tradicionais, mas, sobretudo por despertar um interesse crescente pela “cultura cervejeira”. Trata-se da visão de Marcelo Carneiro da Rocha, presidente da recém-criada Associação Brasileira de Microcervejarias. “O acesso à informação é um dos principais motivadores desse ‘boom’ de cervejas especiais no mercado”, afirma ele.

De olho em um nicho com grande potencial de crescimento no Brasil, que em volume de produção fica atrás apenas de China e Estados Unidos, muitos cervejeiros artesanais passaram a apostar no setor nos últimos anos com a abertura de negócios próprios. Segundo Rocha, dono da cervejaria Colorado, de Ribeirão Preto (SP), há atualmente mais de 300 microcervejarias espalhadas pelo território brasileiro, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. “Dentro do setor produtor de cervejas nossa representação é bem pequena, cerca de 1%”, afirma. Os outros 99% fazem parte da grande indústria, com empresas como Ambev e Brasil Kirin, que detêm a gestão de marcas nacionalmente conhecidas.

Mas as microcervejarias avançam com otimismo. De acordo com os últimos dados compilados pelo Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), as cervejas tradicionais registram um crescimento de 7% a 8% ao ano; enquanto o índice das cervejas com rótulos especiais chega a dobrar, alcançando até 15%.

Foi justamente a briga por mais espaço que propiciou a criação da associação da qual Rocha foi nomeado presidente. A assembleia que oficializou o lançamento da ABM, no final de outubro, reuniu diversos profissionais da área. Ao todo, 82 microcervejarias já estão filiadas à entidade.

“Havia associações regionais que buscavam estruturar o setor. Fizemos apenas uma junção para dar voz a um movimento nacional, que possa abarcar microcervejarias de todos os cantos do País”, comenta Rocha. A meta primordial da ABM é aliviar a carga de impostos ligados à produção artesanal. “Nosso principal desafio consiste em mostrar que vivenciamos um fenômeno novo sujeito a uma legislação antiga”, explica.

Após uma discussão mais detalhada entre as microcervejarias filiadas, a associação pretende formalizar um documento com as principais demandas. “O objetivo inicial é baixar os impostos, mas também vamos pleitear melhores condições de preços para compras coletivas de matéria-prima – visto que grande parte vem de outros países. Outras duas metas importantes estão ligadas à formação profissional e à organização de feiras e festivais”, planeja o cervejeiro.

TENDÊNCIA DE CONSUMO

Até bem pouco tempo, quando se falava em harmonização de um prato com uma bebida logo vinha à mente algum rótulo de vinho. Pois este cenário tem mudado nos últimos anos: festivais que promovem a harmonização de pratos com cervejas especiais estão cada vez mais comuns nos salões de bares e restaurantes brasileiros.

“Há uma evidente alteração no perfil do consumidor”, explica a beer sommelière Cleite Couto, da cervejaria artesanal St. Gallen, de Teresópolis (RJ). Segundo ela, boa parte dos clientes deixou de lado o consumo em grandes quantidades porque aprendeu a degustar as cervejas. “A busca por produtos diferenciados é uma tendência em todas as áreas e está sendo determinante para o ramo de cervejas especiais. O brasileiro passou a fazer escolhas que priorizam a qualidade e não o preço. Foi disseminado, inclusive, um lema que resume essa mudança de postura: beba menos, beba melhor”, esclarece Cleite.

A especialista ressalta a importância dos eventos cervejeiros, que estão abrindo portas para o mercado nacional e internacional. Em novembro, por exemplo, aconteceu pela primeira vez em solo brasileiro um dos maiores eventos mundiais de cervejas especiais, o Mondial de La Bière. A feira realizada na capital fluminense, voltada aos consumidores e também aos profissionais da área, ofereceu palestras, talk-shows, degustações, harmonizações, entre outras atrações.

“O marketing decorrente de eventos como este tem impacto no faturamento de bares e restaurantes, visto que os clientes passam a buscar mais informações sobre os rótulos de cervejas especiais e, claro, desejam prová-los”, avalia Cleite. Dessa forma, ela destaca a grande oportunidade de negócio que os gestores e proprietários têm em mãos. “Aqueles que souberem montar uma boa carta de cervejas, com opções de estilos diferentes, sairão ganhando”, analisa.

PARA TODOS OS GOSTOS

Conforme explica a beer sommelière, a principal diferença entre as cervejas tradicionais e as especiais é a quantidade de malte de cevada nas receitas. Para ser considerada especial, a bebida precisa ser 100% malte; enquanto as comuns são compostas, em média, por 50% de malte e o restante é completado por cereais não maltados – como milho e arroz. A adição desses grãos ocorre justamente para baratear a produção em larga escala. A exceção, no caso, é a cerveja de trigo que, apesar de também ser considerada especial, possui apenas 20% de malte e 80% de trigo.

Mas as diferenças não param por aí. Os rótulos especiais recebem o lúpulo, uma flor responsável por dar sabor e/ou amargor à bebida. Quando o malte de cevada e o lúpulo são misturados à água, começa então o processo de fermentação. As leveduras adicionadas, ou seja, os microrganismos que se alimentam dos açúcares contidos nos grãos de malte, são capazes de gerar álcool e gás carbônico. É nesta etapa que se divide os três grandes grupos de cervejas especiais: as de baixa fermentação (lagers), que apresentam sabor mais suave; as de alta fermentação (ales), mais encorpadas; e aquelas de fermentação espontânea (lambics), geralmente mais cítricas. São destes três tipos que derivam os demais estilos e, portanto, uma infinidade de rótulos.

Proporcionar diversidade de sabores representa um dos grandes diferenciais do segmento. As cervejas especiais podem variar na coloração, no teor alcoólico, no nível de amargor, entre outras particularidades que compõem cada receita e dão origem a um novo sabor.

CASAS ESPECIALIZADAS

A exemplo do vinho, que por requerer processos de produção complexos e, logo, uma venda mais particularizada, as cervejas especiais também estão ganhando casas especializadas na sua comercialização. Aliás, um dos sócios do Bardega, bar paulista voltado aos apreciadores de vinho, acaba de se lançar no setor de cervejas especiais com a inauguração do Bier Bär, no bairro de Moema.

O empresário Marcelo Proença relata que teve a ideia há quase um ano, quando percebeu que aumentara o volume de pedidos de cervejas especiais no Bardega. “Sempre fui um grande apreciador de vinhos e também de cervejas. Busco conhecer estilos diferentes nas constantes viagens que faço. Mas, passeando pelo meu bairro, notei que não havia casas especializadas em cervejas especiais”. A observação do empresário foi encarada como uma oportunidade. A partir daí, ele começou a pesquisar o setor cervejeiro, visitou diversos bares e conseguiu um ponto para instalar seu novo negócio.

Os cerca de 160 rótulos oferecidos pela casa estão separados por estilos, em cinco geladeiras com temperaturas controladas, que ficam à disposição dos clientes no salão. Conforme explica Proença, a estratégia de “self-service” permite que os frequentadores tenham liberdade para escolher, sem precisar chegar ao balcão para pedir ou ficar preso à carta de cervejas. “O design das embalagens chamam muito a atenção, seja pelo formato ou pelas cores. Acho importante que os clientes visualizem isso porque ajuda a estimular o interesse pela bebida”, conta.

LOJA QUE VIROU BAR

Até mesmo lojas, que antes apenas revendiam rótulos nacionais e importados, passaram a realizar degustações frequentes, a tal ponto que ganharam status de bar-empório-restaurante. Este é o caso do Mr. Beer, uma das maiores redes de cervejas especiais do País, presente no mercado desde 2009. Apenas dois anos após a inauguração do primeiro ponto de venda – um quiosque no Shopping Ibirapuera, na capital paulista –, a marca passou a investir em espaços gourmets, destinados à harmonização entre cervejas especiais e petiscos.

No início de novembro a rede anunciou que, diante de uma necessidade de reposicionamento, os pontos foram remodelados. O primeiro a ganhar o novo layout foi o Espaço Gourmet Mr. Beer do bairro Anália Franco, localizado na zona leste de São Paulo. A novidade inclui 12 bicos de chopes, enquanto as demais unidades da rede têm de quatro a oito; além de um cardápio mais extenso, com sanduíches e sobremesas. De acordo com a empresa, a maior parte das comidas é preparada com ingredientes usados na produção das cervejas, como cevada e lúpulo.

O espaço conta ainda com degustações orientadas, eventos de fabricação de cerveja artesanal, petiscos exclusivos para harmonização, entre outros serviços. Na época da reinauguração, a rede divulgou que o principal objetivo da remodelação é promover um ambiente mais interativo e próximo dos clientes cervejeiros, e não apenas um local que simplesmente comercializa bebidas especiais.

De acordo com Humberto Ribeiro, diretor do Mr. Beer, a rede possui um portfólio com mais de 500 rótulos. “Procuramos oferecer variedade, pois o cliente está cada vez mais exigente e em busca de um consumo com mais qualidade”, comenta. Sobre o cenário de cervejas especiais no Brasil, ele pontua: “o mercado ainda é incipiente, mas apresenta forte crescimento – o que exige preparo e profissionalização”. A rede faturou R$ 30 milhões em 2013 e a expectativa é quase dobrar a quantidade de lojas no próximo ano, passando de 80 para 150 pontos de venda.

NOVOS RUMOS

Pioneira na importação de cervejas especiais no Brasil, a Bier & Wein decidiu comemorar os 20 anos de atuação, este ano, com o lançamento de um modelo de negócio que une microdistribuição e varejo. Trata-se da Confraria Paulistânia, que já nasceu destinada a ser expandida por meio de franquias.

A primeira unidade, aberta no início de julho no município de São Caetano do Sul (SP), funciona como projeto-piloto. A ideia consiste em fazer com que a microdistribuição seja direcionada a revendas locais (como bares, restaurantes, empórios, hotéis, mercados etc.) e o bar-loja atraia os consumidores finais.

“Os 20 anos na importação de cervejas especiais nos proporcionou muita experiência. Nosso principal objetivo agora é compartilhar esse conhecimento com parceiros que queiram investir no ramo através do franchising”, afirma Marcelo Stein, proprietário e diretor da Bier & Wein.

Não é a primeira vez que a importadora lança outras frentes de negócio. Em 2009, por exemplo, a empresa passou a produzir uma marca própria de cerveja puro malte – a Paulistânia. E agora, quatro anos depois, o nome da bebida foi escolhido para batizar a nova rede.

De acordo com Stein, como a Confraria Paulistânia possui focos no varejo e na distribuição, há eventos promovidos especificamente para os segmentos na unidade de São Caetano. Nas noites de terça-feira são realizadas degustações, seguidas de harmonizações e palestras – todas voltadas ao consumidor final. Mas há dias da semana em que esses encontros são direcionados à brigada de bares e restaurantes da região.

Desta forma, os garçons das casas que são clientes da importadora são convidados a participar de treinamentos mais específicos, com foco em técnicas de venda, abordagem da história de alguns rótulos, modo correto de servir, entre outras particularidades.

A responsável por guiar esses encontros com a brigada – e também com os clientes – é a beer sommelière Tatiana Spogis, também gerente de marketing da Bier & Wein. Experiência para compartilhar não falta: recentemente ela participou da terceira edição do Campeonato Mundial de Sommelier de Cerveja (Beer Sommelier World Championship), na Alemanha, e ficou entre os três maiores conhecedores de cervejas do mundo. Até o momento ela é a única brasileira a ocupar este título.

Informação é tudo

Tatiana Spogis explica que os mesmos cuidados que os restaurantes têm com a montagem de uma carta de vinho devem ser adotados na criação de uma carta de cervejas especiais. “O que importa é a qualidade e não a quantidade”.

Por se tratar de um produto menos conhecido pela grande maioria, há necessidade de criar com o público uma comunicação específica e bem-estruturada. “Além dos displays de mesa, banners e demais elementos visuais que despertem a atenção, o cliente precisa ser abordado por garçons que saibam expor os principais aspectos dos diferentes estilos de rótulos. Acima de tudo, a brigada deve entender quais são as expectativas desses clientes, pois de nada vai adiantar propor uma determinada cerveja se não houver a captação de suas preferências”, recomenda a beer sommelière.

Outro ponto importante que ela ressalta está relacionado à harmonização. “Muitas vezes, a bebida pode ter o sabor alterado quando consumida com pratos que não casam muito bem. Para não ter erro, é importante dar dicas de harmonizações”, alerta Tatiana. “Costumo dizer que cerveja é gastronomia líquida, e, por sua vez, ela promove uma experiência sensorial incrível. A melhor forma de fidelizar clientes é permitir que eles tenham boas experiências com a bebida”.

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